CEGUEIRA


Entrou no café e sentou-se.
Muniu-se do jornal diário e deitou, como habitualmente, o olho à primeira página.
Logo, vista adentro, irrompeu-lhe uma das notícias. Versava sobre um doutíssimo acórdão de um Tribunal Superior deste País conhecido como sendo de lume brando.  
À partida nada de especial naquela notícia, desde logo velha, porque já de véspera.
Tão só se referia a uma mulher agredida com uma moca de pregos, por se ter posto a jeito, devido à prática de adultério.
Estava cá um alvoroço naquele dia no café, por causa da nova-velha. Não se abordava outro mote.
António não percebia o exagero da situação.
Tinha acordado tudo louco naquela manhã?! 
Só António estava são e no seu perfeito juízo?!
Só ele era contra a prática do adultério?!
Depois admiram-se, não é?!
Bendito Juiz.
Deviam ser todos assim, corajosos.
Grande homem.
Com “H” enorme.
Levou com a moca de pregos? Foi pouco, pensou António. Põe-se aquela a florear o desgraçado do marido e está à espera de quê?! Miminhos, querem ver?!
Na mesa ao lado da sua, um casal jovem conversava, indignado com tal decisão.
António ouviu-os e lançou-lhe, propositadamente, um olhar dragoneante.
Oh!!!
Que se ponham finos.
Que ganhem juízo.
A jovem mulher expressava-se:
- Até parece que não estamos num País onde a violência doméstica grassa. Acaso não jazem, diariamente, mulheres fruto de tal violência?! E as que têm de desabrigar-se do seu lar, em fuga, como se fossem autênticas criminosas?! E os maus-tratos, humilhações e o desamor a que elas, eternamente, se sujeitam na promessa da mudança?!  Que justiça é esta, carago?!
Segura-te, António.
Está calado, António.
Olha-me esta!
Até aposto que já enfeitou o marido.
E a cara de tolo a dele, a concordar com ela!
Só visto.
Grande morcão!
Mais um floreado, de certeza.
Bem-feita.


Texto de autoria de Lurdes Mesquita Babo

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