Ainda há tempo

Uma carrinha parada junto à entrada de um prédio.
No lugar ao lado do condutor, sentada numa cadeira de transporte, estava uma criança, com cerca de dois anos, de uma beleza inigualável. Chorava desesperadamente. Era um choro pintado de gritos e soluços.
Atrás dela, mas do lado oposto, igualmente sentado, respeitando a legislação de transporte para crianças, estava um rapaz de, aproximadamente, cinco ou seis anos. O vizinho confidenciou-me serem irmãos. Era uma criança de um comportamento irrepreensível, nos antípodas da irmã. 
A mãe deles era uma mulher na casa dos quarenta anos, franzina, mas com uma força demolidora. Enquanto falava para a menina, tentando acalmá-la, não parava. Abriu as enormes portas da carrinha e aí pousou uma rampa que os seus braços carregaram. Desapareceu por instantes. 
Regressou rapidamente, empurrando rampa acima uma cadeira de rodas que transportava um homem na casa dos cinquenta anos. Conseguiu colocá-lo dentro da carrinha em segurança, suando sangue para o fazer, prendendo-o com vários cintos. Fechadas todas as portas, sentou-se no lugar do condutor e arrancou viagem.
Para perceber que aquele homem estava bastante doente não era preciso ser médico..
Fiquei a saber o que tinha pelo vizinho: a peste deste século que apelidam de cancro.
No caso dele no cérebro, mas já com metástases pelo corpo todo.
Fiquei pregada ao passeio, ao vê-los partir. Foi como se o passeio tivesse cimento-cola e algo, inexplicavelmente, me prendesse ali, àquele momento.
O vizinho confidenciou-me: é muito grave, está muito mal, é por pouco tempo, dias, um, dois meses. Mas tem que ir às consultas e tratamentos: a vida continua.
Questionei o meu íntimo: A vida para aquele homem continua? Se lhe chamarmos vida... continua... mas de mãos bem dadas com a morte.
Esta interrogação interna fez-me zangar comigo própria: não tens vergonha de ser a rainha dos queixumes? 
Regista aquele momento como se de uma fotografia se tratasse. 
Memoriza-o. 
Toma conta de ti. 
Se não o fizeres, não esperes que alguém o faça por ti.
Agarra a tua vida de frente, vive-a intensamente, até que a morte a venha beijar e te transporte para outro lugar.
Por ora, ainda estás a tempo.
Como muitos outros ainda têm tempo.


Autora: Lurdes Mesquita Babo

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