O abrigo com telhas de medo

Na face dela, o desenho da mão dele. Na vermelhidão daquela, a força dele. Nos seus olhos, a humilhação. Na sua expressão corporal, a revolta.
Era apenas a primeira vez. Pediu perdão. Omitiu-lhe é que seria a primeira de muitas. Por tudo. Por nada. Só porque sim. 
Ela - crente-, perdoou-o. Afinal o amor vence todas as dificuldades, pensou.
Mas cansou-se: do repetido desenho na sua face, da cor vermelha gravada nela, da humilhação e da revolta. Quis terminar. Porque não era amor verdadeiro. Amor a sério não magoa, não deixa marcas, não inferioriza. 
Ele não aceitou. Tudo o que fazia era por amor. Amava-a. Muito! Como se fora sua propriedade. Sobre ela achava ter os direitos de uso, gozo, fruição e exclusividade. Ela não concordou e abalou. Escondeu-se (com o filho) no abrigadoiro com telhas de medo. 
Ele quis saber do seu paradeiro. Queria também saber do filho. Perguntou à mãe, perguntou ao pai, perguntou à irmã. E quando descobriu, o seu caminho ganhou novo rumo: as pedras da calçada em frente à morada deles. Um dia. Outro dia. Mais um dia. Até ao dia em que a viu. Seguiu-a. Abordou-a. Não entendia como ela não queria aquele amor. Como podia esquecê-lo? Como ousava recusá-lo? Existia outro. Única explicação possível. Traição? Não lhe perdoaria. Ou talvez lhe perdoasse, se no outro dia, à mesma hora, o deixasse ver o filho. Ela teve pena. Era mau marido mas não era mau pai. Compreendia-se, tinha saudades. Fizeram um acordo. Ela traria o filho. Ele não a procuraria mais. No tribunal acertariam em pormenor as visitas.
No outro dia, ela levou-lhe o filho. Ele tirou as mãos dos bolsos como se fosse pegar nele. Mas não, delas voaram duas balas. E a recepção daqueles invólucros foram, na perfeição, aqueles (mais) dois corações.

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