Espelho

Estava escrito: “morreu”. 
Li e - de imediato -, as pérolas desacorrentaram-se e submergiram a minha fácies. Contemplei-me ao espelho e ele, gentilmente, devolveu-me o meu retrato de dor. Estilhaçou-se com o tamanho dela: fragmentos refletores da minha condição interior. Aquele amontoado de vidros rasgados devolveu-me a vulnerabilidade de diversos sentimentos: pesar, injustiça, revolta, saudade.
Pesar: pela partida. 
Injustiça: pelo modo como partiu.
Revolta: porque o hospital devia ser lugar de cura - e não de contágio do vírus que agrega a morte.
Saudade: porque foi ontem - mas o hoje já é uma eternidade.
Diz-me TU que morte é esta que se veste de solidão?
Que fenecimento é este que se despoja das roupas do corpo e as substitui por sacos de plástico?
Que vida é esta que não permite uma despedida?
Que existência é esta que nos rouba as memórias?
Que enfermidade é esta que nos impede de partilhar a dor?
Que praga é esta que coloca na vida um imerecido ponto final?
TU...diz-me como se faz este luto - porque eu não sei.
Revela-me como posso tornar respeitável este último momento - porque eu não sei.
Conta-me como posso unir cada pedaço desse espelho quebrado e, na sua junção, voltar a ver a perfeição da sua imagem, do seu colorido sorriso - como se nada disto tivesse acontecido.  
Apenas sei o que sinto: o vazio, o sofrimento, a ausência, a nostalgia. 
Escuta. Ouve como chora o meu coração. É real; isso é a única coisa que sei. De resto: eu nada sei. Perdoa a minha ignorância.
  

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