Ingratidão!
Com o rosto em forma de incredibilidade, olhar preso no infinito, sentado à sua gasta secretária, eis António Cerqueira, depois da saída do seu cliente.
Apesar da gigantesca sensação de ingratidão que lhe percorria o corpo, sentia-se revoltado consigo mesmo. Raios, tantos anos de experiência e sem aprender!
Cá fora eram bem audíveis os murros que distribuía pela velha madeira como também o epíteto que vociferava:
- Burro, burro...
Luísa, a secretária, levantou-se assustada. Aproximou-se da porta do gabinete, bateu e perguntou:
- Dr. Cerqueira, posso ajudar?
- ...
- Sr. Dr., está bem? Estou preocupada.
A fúria acalmou dando lugar ao silêncio.
Luísa agarrou num balão de coragem, respirou fundo, segurou o puxador e entreabriu a porta. Cerqueira estava debruçado sobre a secretária coberta por papéis desordenados, com a cabeça entre as mãos.
Ela deu um passo em frente, na sua direcção, mas a mão que este agigantou fez com que ficasse imóvel, recuasse e fechasse a porta.
Regressou ao seu lugar.
Era melhor dar-lhe tempo e espaço.
O relógio completava voltas e voltas.
Luísa sentia-se zonza quando o telefone tocou.
- Luísa, arrume-me por favor a secretária. Organize-me os papéis no dossierdo cliente.
Ela assim o fez.
Ele continuou:
- A Luísa sabe o trabalho que este processo me deu, não sabe?
- Claro que sei Doutor.
- Sempre com vencimento de causa!
- E eu não sei, Dr. Cerqueira?
- Foram precisas muitas horas de estudo, muita aplicação, muitas reuniões e deslocações.
- Sei bem, Dr. Cerqueira.
- Depois de tudo isto, terem o desplante de me dizer que este era um caso ganho à partida, isso não! Não aceitarei! Recuso-me! Sabe qual é a moeda de pagamento na minha profissão?
- Hum...
- Ingratidão, Luísa, ingratidão!
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