Ver com a alma

  

Abriu os olhos e… nada. 

Nada - era tudo o que ele via. 

Não enxergava vultos, nem sequer um fundo negro, nem flashes de luz. Não tinha visão residual. A maleita era total e estava presente desde nascença. O luto dela já o tinha feito - há muito!  A tristeza: tinha-a dominado. A revolta - ultrapassado. Vencera todos esses desafios. Provara a si mesmo que era um ser humano capaz. Apenas não se conformava com a impossibilidade de explicar aquele “nada” aos normovisuais. Ainda para mais, irritantemente, estavam sempre a perguntar-lhe o que conseguia ver! Se bem que, muitos daqueles inquisidores, escolhessem “enxergar” em vez de “olhar”. Optavam pelo “imediato” em substituição do “contemplativo”. Numa perspetiva saramaguiana, digamos que, olvidavam-se da responsabilidade de ter olhos. Por isso, e de um certo modo, eram também invisuais.  

Ele, perante tal fatalidade, decidiu criar estratégias para a combater. Então, as suas mãos passaram a ser as suas frestas, a sua bengala, a ampliação daquelas e o seu cão, o seu guia. Aprendeu a reconhecer as pessoas pela voz. Treinou os seus ouvidos para serem capazes de captar até a nota musical mais silenciosa. Criou uma planta mental - onde os marcos da rua se confundiam com a restauração - usando o seu olfato. Ergueu bem alto a bandeira da igualdade - até porque os invisuais também dormem de olhos fechados.  

Via com a alma, dando largas à imaginação. Com o cérebro mergulhava no desconhecido. Decifrava - para depois se dar ao deleite de sentir. Sentir - que era a sua forma de ver. Não padecia de cegueira mental ou espiritual. Aceitou que a vida era para ser vivida apenas de olhos cerrados. Acima de tudo era um invisual que, não vendo, via tudo aquilo que precisava.

 

 

 

 

 

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