A INDIFERENÇA.





                                       INDIFERENÇA

Maria, médica, cumpria, como habitualmente, a tarefa de fazer o relatório anual dos doentes que tinha atendido na urgência do hospital central onde trabalhava.
Andava tão revoltada com o mundo, por causa do filme diário que aí (vi)via (e que era obrigada a (re)viver) que só lhe apetecia escrever:
Afeta ao atendimento exclusivo de doença única, a INDIFERENÇA.
Etiologia da doença: egoísmo (ego + ismo).
Quando pensava naquele exíguo espaço, totalmente oposto, à sua permanente sobrelotação, qual náufrago agarrado à sua boia de salvamento, o que mais a tumultuava eram os doentes mais velhos
Depositados em macas, horas e horas, dias e dias, trazidos por bombeiros ou lares, despojados de bens e aconchego, tendo apenas por companhia as dores (maiores as da alma que as físicas) e a solidão.
Eles que... já foram filhos que ajudaram os pais.
Eles que... já foram e ainda são pais que se deram e amaram a família.
Agora são avós, bisavós, apenas necessitados de um entrelaçar de dedos, de um enxugar das lágrimas, da simples lembrança da sua existência, mas (azar!) são-no na era da maior doença que afeta os seres humanos: a indiferença.
Caíram no mais completo esquecimento dos que cuidaram e amaram e nem em sonhos (ou sequer em pesadelos) lhes atravessam os pensamentos.
Como se envelhecer fosse exclusivo deles.
Como se os jovens de hoje não fossem os velhos de amanhã.
E os que os levam aos hospitais, são os mesmos que os vão buscar.
Fazem-no, no uso da força do seu trabalho, a troco de míseros euros.
Mas há uma exceção.
Quando morrem.
Aí já são outros, (embora o façam pela mesma razão), levam-nos para outro lugar de onde não regressam mais.
Estes munem-se do obrigatório certificado de óbito.
Mas já não se surpreendem com a causa da morte:
Indiferença.

Texto da autoria de
Lurdes Mesquita Babo

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